sábado, 16 de novembro de 2019

«Casos do Beco das Sardinheiras» de Mário de Carvalho - estudo do prólogo

Ao lermos o prólogo da obra de Mário de Carvalho descobrimos que...


ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO








Prólogo

·        o narrador descreve o Beco fisicamente e populacionalmente
·        bairro popular, de origem muito antiga (talvez antes dos Descobrimentos)
·        as pessoas são muito apegadas ao beco, não gostam de deixar o beco, mas foram saindo dele à medida que o tempo foi passando (Descobrimentos, guerras)
·        sentimos que o narrador gosta do beco e dos seus habitantes
·        alguns dos habitantes do beco foram figuras ilustres (ex. o Dr. Aberracaz, o facultativo judeu, ignorado pela Inquisição, com obra publicada, uma em hebraico e outra em latim onde o narrador foi encontrar a expressão usada ainda hoje no beco “Convém não confundir género humano com Manuel Germano”)
·        este beco é um bairro típico/modelo de outros bairros populares lisboetas
·        o narrador tem a necessidade de ancorar as suas histórias na realidade (Alfama, Mouraria, Torre do Tombo, Descobrimentos, Grande Guerra…), mas também na ficção (não pode situar o beco num mapa, o beco está em todos os bairros de Lisboa e em nenhum deles)


Também percebemos a presença das três religiões monoteístas através da apresentação do doutor Aberracaz, o facultativo judeu, e dos restantes residentes do beco ao longo dos tempos. Algo que tende a enraizar o beco na realidade histórica dos bairros de Alfama e da Mouraria. O artigo publicado no jornal "Público" recorda-nos esse passado onde várias religiões conviviam no coração de Lisboa:


Mouraria, um bairro multicultural também na morte?
Na Mouraria encontraram-se sepulturas islâmicas posteriores às cristãs. E seriam só cristãs? A joalharia parece também apontar para o judaísmo...

João Pedro Pincha
16 de Novembro de 2019, 9:55

Era muito grande, foi usado durante mais de um século e nele foram enterradas pessoas de vários credos e origens geográficas, o que parece indicar que o cemitério da Mouraria espelhou na morte a realidade da vida: um bairro onde conviveram diferentes comunidades lado a lado.

O que há, para já, são hipóteses de trabalho, ainda a requerer muito estudo, mas a descoberta de sepulturas islâmicas e judaico-cristãs exactamente no mesmo local, praticamente contemporâneas, aponta para uma “evidente multiculturalidade” na Mouraria durante o século XV, à semelhança do que hoje acontece.
Já se sabia que na encosta da Graça houve em tempos uma grande necrópole, aqui e ali entrevista através de sondagens e escavações arqueológicas. A construção de um condomínio na esquina entre a Rua dos Lagares e a Calçada do Monte permitiu uma escavação de maiores dimensões.

Os arqueólogos identificaram, primeiro, 71 sepulturas muçulmanas, provavelmente datadas do fim do século XV e início do XVI. Por baixo havia outra necrópole, bastante maior, com 259 túmulos que podem ter origem cristã ou judaica.
Que haja enterramentos cristãos e/ou judaicos datados do século XV é relativamente expectável, embora também eles levantem muitas interrogações. Que haja enterramentos islâmicos depois disso é mais surpreendente. “É uma necrópole muçulmana num país absolutamente cristão”, sublinha Miguel Lago, da Era Arqueologia, empresa responsável pelos trabalhos.

Os enterros islâmicos são fáceis de identificar porque os cadáveres são depositados de lado, virados para Meca, ao contrário dos de tradição judaico-cristã, em que os indivíduos recolhem ao eterno descanso de barriga para cima. As sepulturas cristãs assumiam ainda, muitas vezes, uma forma antropomórfica “para garantir que a cabeça do morto não virava para Meca”, explica a antropóloga e arqueóloga Lucy Evangelista.

Não foi ainda possível determinar com exactidão os períodos em que ambas as necrópoles foram criadas e estiveram em uso. O que está bem datado são as lixeiras em que elas assentavam. Naquela zona havia uma intensa actividade de oleiros, memória que ainda hoje persiste na toponímia. Todo aquele terreno foi usado inúmeras vezes como depósito do lixo originado pelas olarias e a sua datação permite balizar temporalmente as necrópoles.

Começando pela islâmica. “A Inquisição instala-se na década de 1530, por isso é pouco provável que seja posterior a esse período”, diz Marina Pinto, coordenadora científica da escavação. Nessa necrópole, há ainda “alguns indícios que remetem para a presença de africanos da África subsariana”, acrescenta ainda.

Trata-se de “uma série de indivíduos que se destacam pela enorme robustez do esqueleto e características morfológicas do crânio” e que apresentam também “inúmeras modificações dentárias”, esclarece Lucy Evangelista. “Este grupo contém alguns adolescentes que são absolutamente gigantescos”, sublinha. Quem seriam? “Podem não ser escravos”, opina Hermenegildo Fernandes, investigador de História Medieval na Universidade de Lisboa. “Estão integrados num cemitério civil, normal, não me parece que fossem escravos”, sustenta Lucy.

Joalharia é chave
“Há uma continuidade de enterramentos na zona. O facto de haver enterramentos islâmicos não implica que não houvesse enterramentos judaicos e cristãos”, afirma Hermenegildo Fernandes, destacando que a área escavada “não corresponde à totalidade do cemitério” e que só futuras escavações poderão deitar mais luz sobre o assunto. “Ainda não pensámos o suficiente sobre tudo o que estas coisas querem dizer”, alerta o historiador, que ainda assim deixa algumas pistas: “A ideia de segregação das comunidades é relativamente tardia. A separação física é uma coisa do século XV.”

Segundo os relatos da época, quando D. Afonso Henriques tomou Lisboa, em 1147, haveria na cidade tantos muçulmanos como cristãos, e depois disso muita população islâmica por cá ficou, instalando-se sobretudo nos arrabaldes – como a Mouraria, que deve o seu nome precisamente a isso.

“Há uma fluidez de culturas”, diz Lucy Evangelista, que noutra escavação encontrou enterros islâmicos com brincos e colares, algo proibido na religião muçulmana, e que atesta a aculturação das populações. “Do ponto de vista cultural as coisas não são estanques. Há muitos cristãos que usam loiça muçulmana. A corte usa panos de seda feitos em Granada”, exemplifica Hermenegildo Fernandes. “Há marcas identitárias, mas isso não quer dizer que não houvesse coisas que se partilhavam no quotidiano. Existe uma permeabilidade entre universos religiosos e culturais.”

Se isso é verdade na vida, sê-lo-á também na morte. E o mesmo se aplica à necrópole maior, a mais antiga. “Será só cristã ou só judaica? Será que há cristãos e judeus ao mesmo tempo?”, questiona Miguel Lago. A dúvida advém sobretudo da “multiplicidade de características comuns aos dois preceitos”, mas também porque foi encontrado “um conjunto de jóias absolutamente inacreditável”, nas palavras de Lucy, que parece apontar para alguma presença de judeus.

 “Temos indivíduos enterrados com brincos, colares e anéis”, diz. Há ainda objectos que se prestam a mais do que uma interpretação, como o pendente em forma de mão, que está associado à religião judaica (mão de Miriam) como à religião islâmica (mão de Fátima). “A joalharia é um quebra-cabeças. São poucas coisas, pode ser que sejam judaicas, mas precisam de ser estudadas”, diz Hermenegildo Fernandes. Esse é um dos desafios imediatos para a Era.

O objectivo do historiador é levar adiante um projecto de estudo das necrópoles e sua comparação com outras congéneres, em Portugal e no estrangeiro. Há ainda, no seu entender, três questões por responder: qual era a dimensão total do cemitério; de que forma é que estava relacionado com as olarias; quem é que lá está enterrado.



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