segunda-feira, 7 de março de 2016

Jorge de Sena: «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya" (25-6-1959)





Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa — essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
— mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga —
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.






JORGE DE SENA

Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 1919, e morreu em Santa Bárbara, Califórnia (EUA), em 1978. Formou-se em Engenharia Civil pela Universidade do Porto. De 1948 a 1959, foi engenheiro da Junta Autónoma de Estradas.
Em 1959 partiu para o Brasil, onde se doutorou em Letras. A partir de 1965, passou a viver nos EUA. Foi professor na Universidade de Wisconsin e, depois, na Universidade da Califórnia – Santa Bárbara. À data da sua morte, era Director do Departamento de Espanhol e Português e do Programa de Literatura Comparada daquela Universidade.
 
O nome de Jorge de Sena aparece inicialmente ligado à revista literária «Cadernos de Poesia», primeiro como colaborador, depois como elemento da direcção. Além de poeta, foi ficcionista, dramaturgo, ensaísta e tradutor.
 
Alguns destaques na obra de Jorge de Sena:
Poesia:
 
Perseguição (1942)
Metamorfoses (1963)
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
Exorcismos (1972)
 
Ficção:
 
Os Grão-Capitães (1976) – contos
O Físico Prodigioso (1977) – novela
Sinais de Fogo (1979) – romance
 
Teatro:
 
O Indesejado (1951)
 
Ensaio:
 
O Reino da Estupidez I (1961)
Uma Canção de Camões (1966)
Dialécticas Aplicadas da Literatura (1978)
 
 
Jorge de Sena na literatura portuguesa.
 
Para ouvir alguns poemas

Sem comentários:

QUEM É QUE NÃO QUER VER MELHOR O MUNDO?

QUEM É QUE NÃO QUER VER MELHOR O MUNDO?